fui uma criança introspectiva e demasiado séria, cresci, aprendi sem esforço, tornei-me preguiçosa, fiz um intercâmbio na alemanha, entediei-me na escola, aprendi alemão, entrei para a faculdade, fui dirigente de uma associação de estudantes, cansei-me da associação de estudantes, trabalhei num centro comercial, e num infantário, e em quase todos os bairros sociais de lisboa, passei dias a contar trocos, trabalhei no freeshop do aeroporto, fiz inquéritos sobre salsichas, congelados e comboios da cp, cai ao tejo e fui salva pelos bombeiros, lavei pratos num restaurante, ganhei uma bolsa de verão, vivi um mês e meio na dinamarca, fiz um curso de dinamarquês, atravessei parte do mar do norte e do báltico num navio, sonhei ser tradutora, assistente humanitária, repórter de guerra, acabei a faculdade, fui entrevistadora do ine, fiz o estágio contrariada, fui co-autora de um dos guias de restaurantes da repsol, redigi roteiros para duas regiões de turismo, escrevi crónicas para um jornal, fui crítica gastronómica, dei uma carga de porrada a uma idiota membro de um gang no bairro alto enquanto o resto do gang assistia, tive um trabalho que começou por ser giro e acabou num pesadelo, torci o braço a um assaltante e apontei-lhe a seringa ao olho, tive acessos de raiva, e de indignação, e de tédio, fui feliz, fui infeliz, fugi com uma mochila e pouco mais para maputo só com um bilhete sem volta e meia dúzia de euros no bolso, quase fiquei louca, se calhar fiquei mesmo louca e ainda não passou, fui residente oficial em moçambique, atravessei a swazilandia, conheci a áfrica do sul, vi um diamante, não compreendi o delírio com os diamantes - são pedras, ponto - molhei os pés no índico, aprendi a gostar de praia, tornei-me livre, voltei a casa, arranjei um trabalho giro mas demasiado sério, comecei tudo do zero, molhei os pés no adriático e no mediterrâneo, atravessei e a bósnia e a sérvia de carro, fui investigada pela brigada anti-terrorista, afinal a brigada anti-terrorista enganou-se, espetei com um saco de compras na cabeça de um rapaz que me queria roubar, passei três semanas a atravessar a índia, apanhei um susto, levantei-me, reaprendi a andar, voltei a ter vontade de ser feliz, trabalhei, trabalhei, trabalhei... e hoje ouvi palavras como inteligência, qualidade e bom senso. até aqui parece que correu tudo bem. mas ainda assim às vezes penso como raio cheguei cá se não era aqui que pensava vir. novembro costuma mudar-me a vida. este que agora acaba talvez também a mude. mas também me deixou com mais dúvidas. ainda assim vou festejar. acho que ainda tenho uma garrafa de Pias Reserva. é muito bom e está a um preço decente no pingo doce.