pela segunda vez na vida, x está prestes a ficar sem rede e com o mundo nas mãos. pela segunda vez na vida, x vai ficar absolutamente só consigo e com as coisas que tem por dentro. da primeira vez que isso aconteceu, x ia ensandecendo com o turbilhão de coisas que a passaram a atropelar sem aviso. cores, cheiros e sons passaram a atingi-la com uma violência insana. x ficou exposta a tudo. e tudo por onde passava a agredia de forma vil. cruzar-se com alguém com ar triste era motivo bastante para x se desfazer em lágrimas. ver uma flor a crescer era motivo bastante para se sentir a pessoa mais feliz do mundo. a música passou a contar-lhe histórias de forma tão incrivelmente clara que x chegou a pensar que há uma língua secreta qualquer nos sons que x percebe à distância. e as cores, as cores passaram a ter significados transparentes. x passou a ver de forma periférica tudo o que se passa à sua volta. a intuição e o engenho aguçaram-se a pontos de x conseguir agir de forma absolutamente funcional apesar de viver num mundo alucinado cheio de sentidos apurados.
da primeira vez que isso aconteceu, x passou a sentir tudo. e tudo de forma gigante. x descobriu, também, que tem várias cabeças e que, às vezes, todas elas falam ao mesmo tempo. x conseguiu impor-lhes disciplina e fazê-las expressar-se à vez. deve ser por isso que x consegue ter um trabalho intelectual e tecnicamente muito sério e muito exigente, apesar de pelo meio se perder muitas vezes num mundo além de cá.
quando ficamos apenas com as coisas que temos por dentro, ficamos sós de gente. e x precisa desse mundo de solidão. é ali que se reencontra. no mundo real, x tem sempre muito ruído à volta. e muitas realidades dispares e inconciliáveis. e muita gente. sobretudo muita gente. por isso, é difícil a x ter tempo e disponibilidade para se recolher consigo. talvez seja por isso que a vida lhe dá assim uns empurrões para o abismo, de quando em vez. obrigando x a olhar-se para dentro, sem distracções externas. e, sobretudo, sem gente para cuidar. porque x tem a tendência para estar sempre a cuidar de alguém. ou de alguma coisa. da primeira vez que x ficou sem rede e com o mundo nas mãos, x assustou-se com tudo. sobretudo consigo própria. mas descobriu que é enorme.
agora, pela segunda vez na vida, x vai ficar sem rede e com o mundo nas mãos. x sabe, portanto, que ficará, de novo, perto da insanidade com o turbilhão de coisas que a vão atropelar sem aviso. e é tão assim que x ainda nem sequer saiu daqui e o mundo já está virado do avesso.
ainda assim, quando está nesse estado de contacto permanente com o todo, x vai passando pelo mundo como que a levitar. deve ser por isso que nos últimos dias x sai à rua e as pessoas olham-na com jeitos de surpresa. como se vissem luz nos olhos de x. e x sabe como ninguém que eles estão extraordinariamente brilhantes.
da primeira vez que x ficou sem rede e com o mundo nas mãos, os olhos de x mudaram de cor. de um castanho absolutamente castanho, passaram a um avelã amarelado translúcido. desta vez, caso as forças telúricas do universo queiram repetir a graça, bem que podiam escolher o verde. x gostava de ter olhos verdes.
não, x não é doida. é até bastante sã.