26.10.16

e um dia conheces alguém até ao âmago. e conheces tão bem, mas tão bem, que antecipas as frases, as dores de barriga, as dúvidas, os gestos, tudo. conheces todas as rugas e pequenos defeitos da pele. conheces os diferentes tons de voz consoante o humor. e todos os trejeitos do olhar. e do toque. conheces tudo o que havia para conhecer naquele lugar preciso do tempo e do espaço. e conheces suficientemente bem para saber que um dia, por qualquer razão, séria ou fútil, essa pessoa que conheces até ao âmago vai certamente esfarelar a tua confiança e fazer ruir tudo o que era tido como certo. e um dia isso acontece. e essa pessoa que conheces (ou conhecias) até ao âmago, passa a ser estranha. estranha mas familiar ao mesmo tempo. e passas a odiar essa pessoa que conheceste até ao âmago mas que já não conheces, apesar de essa pessoa ter feito exactamente aquilo que esperavas que fizesse, porque um dia a conheceste demasiado bem e sabias, mesmo não querendo saber, todas as nuances das suas reacções face à adversidade. parece um paradoxo. mas não é. e depois do ódio - visceral, duro, mortal - chegam em turbilhão uma série de outros sentires -  raiva, nojo, desprezo... e outros que nem sequer se sabe bem o nome. no fim, indiferença. absoluta. mas chega o dia em que te voltas a cruzar com essa pessoa que conheceste até ao âmago. e nesse dia tens vontade de rir sem parar. porque a pessoa que conheceste até ao âmago morreu pelo caminho. e tu, contra todas as probabilidades, sobreviveste ao mais duro golpe de perceber que, na verdade, não conheces nunca ninguém. nem a ti. e ris sem parar porque percebes que essa pessoa que conheceste, mas na verdade não conheces já, não deixa de ter um ar incompleto e oco. ainda que para os demais pareça estar bem, muito bem até. mas houve um dia em que tu conheceste essa pessoa até ao âmago. e, apesar de ela ter arrepiado caminho e invertido a direcção, o âmago que um dia conheceste, esse, continua lá. escondido. tapado pelas vestes adoptadas na dimensão paralela por onde caminha. e tu ris. mas, apesar de tudo, esta história tem sempre um fim triste.

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